ÚLTIMOS DIAS E MORTE
Adoptou a pose do Anjo e disse: «Vai nascer.
Os seus braços terão a forma do círculo, e cada um
dos seus dez lábios anunciará a última madrugada.»
Depois, vencido pelo sono e pelo álcool, deixou-se cair
na cadeira. Entretanto, a Europa acordava para um novo
império espiritual. Vencidas as épocas de guerra
e de mediocridade, os artistas e os filósofos
juntavam-se em torno de novas escolas de estética
e política.
Não os acompanhou. Deambulava pelos velhos bares
junto ao cais, e em breve a velhice e o vício
o impediram de tomar consciência do seu próprio
estado. Então, tudo o que fazia era desenhar,
em grandes folhas de papel sujo, imagens obscenas
que o atormentavam. E nesse exercício consumiu
os seus últimos dias. Agora, poucos se lembrarão
ainda de que, numa noite de vinho e regozijo,
riram à sua custa - vendo-o levantar-se a custo,
murmurar de braços abertos uma imperceptível frase,
e regressar depois a um obstinado silêncio
que só a morte quebraria.
NUNO JÚDICE
Wednesday, March 29, 2006
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