Saturday, March 25, 2006

UMA VOZ POÉTICA CRUELMENTE REPRIMIDA PELO FASCISMO DOS COSTUMES

AUTOGRAFIA

Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra


O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro é moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris - já se arranjaram algumas
Enlaces e divórcios de ocasião - não foram poucos
Conversas com meteoros internacionais - também já por cá passaram
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma só história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha

E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndios e o teu retrato grande!

MÁRIO CESARINY

UMA LIBERDADE POÉTICA QUE NUNCA PERDEU A ESPERANÇA

ELA TEM OS OLHOS SANGRENTOS E SERENOS

Ela tem os olhos sangrentos e serenos. São os seus
olhos de sangue, de ondas de sangue em movimento.
A sua boca cerra-se num silêncio de fogo, num silêncio
terrível como se temesse desencadear, abrindo-a, a
tempestade dos mundos, a hecatombe redentora. É a própria
boca da vontade, do amor que não perdoa. A vingança
nela tem outro nome: a justiça. Ela é todo o passado,
todo o presente e todo o futuro.

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Friday, March 24, 2006

ELEGIA PARA UM HERÓI REVOLUCIONÁRIO QUE TAMBÉM FOI ÍCONE POP

ELEGIA DAS ÁGUAS NEGRAS PARA CHE GUEVARA

Atado ao silêncio, o coração ainda
pesado de amor, jazes de perfil,
escutando, por assim dizer, as águas
negras da nossa aflição.

Pálidas vozes procuram-te na bruma;
de prado em prado procuram
o potro mais livre, a palmeira
mais alta sobre o lago, o barco talvez
ou o mel entornado da nossa alegria.

Olhos apertados pelo medo
aguardam na noite o sol do meio-dia,
a face viva do sol onde cresces,
onde te confundes com os ramos
de sangue do verão ou o rumor
dos pés brancos da chuva nas areias.

A palavra, como tu dizias, chega
húmida dos bosques: temos que semeá-la;
chega húmida da terra: temos que defendê-la;
chega com as andorinhas
que a beberam sílaba a sílaba na tua boca.

Cada palavra tua é um homem de pé;
cada palavra tua
faz do orvalho uma faca,
faz do ódio um vinho inocente
para bebermos contigo
no coração em redor do fogo.

EUGÉNIO DE ANDRADE

Thursday, March 23, 2006

A ESPERANÇA NUM PAÍS DIFERENTE, NA POESIA DE UM JOVEM ALCOBACENSE QUE PROVAVELMENTE NÃO SONHAVA AINDA COM O SEU FUTURO POLÍTICO...

E O NOSSO PAÍS NÃO TERÁ PAREDES

E o nosso país não terá paredes. Não terá paredes
nem telhados. Nada a cobrir a nossa viagem constante
ao dia virgem. Nada a frustrar
a íntima incursão.

As gargantas roucas de todos os futuros novembros
irão adormecer na fonte perene da nossa dádiva.
Na boca dos homens cativos ficará o nome do Alberto Costa
como uma toada exausta. E, clandestinos,
chegaremos à última passagem.

Lentamente esqueceremos as outras ilhas, lentamente
ergueremos na ilha a nossa tenda.

Ó bruscamente fendamos o dia virgem
como na ilha crescem as flores silvestres.

ALBERTO COSTA

Tuesday, March 21, 2006

UM POEMA DA GUERRA COLONIAL, EM NOME MUITO PRÓPRIO

MONÓLOGO E EXPLICAÇÃO

Mas não puxei atrás a culatra,
não limpei o óleo do cano,
dizem que a guerra mata: a minha
desfez-me logo à chegada.

Não houve pois cercos, balas
que demovessem este forçado.
Viram-no à mesa com grandes livros,
com grandes copos, grandes mãos aterradas.

Viram-no mijar à noite nas tábuas
ou nas poucas ervas meio rapadas.
Olhar os morros, como se entendesse
o seu torpor de terra plácida.

Folheando uns papéis que sobraram
lembra-se agora de haver muito frio.
Dizem que a guerra passa: esta minha
passou-me para os ossos e não sai.

FERNANDO ASSIS PACHECO

Sunday, March 19, 2006

A GUERRA COLONIAL, EM DISCURSO POÉTICO INDIRECTO...

TAMBÉM AQUI VIETNAM

Cada manhã
recebemos no telégrafo o pão que nos impõem
o que em agonia mastigamos vigiando
a dolorosa digestão: passará
nas tripas?

Leveda negro este pão da morte
a que não escaparemos
sem destruir esse forno de sombras
onde coze
a incurável ferida que rasgará as entranhas da terra.

Que outra coisa comer se é este o pão
que nos fere a garganta a cada fome
onde quer que estejamos?

O tempo morde-nos os ossos. A tenaz
aperta-nos a voz sob os detritos.
Que casulo protege da farinha
assassina? Saiamos para a luz. Façamos
de toda a pedra bala
antes que o relâmpago irrompa e a música
seja o leve tombar da poeira radioactiva.

EGITO GONÇALVES