à conversa com... Pedro Tamen
a propósito do seu último livro "O livro do sapateiro"
Crítica na Revista Ler:
Pedro Tamen faz do trabalho do sapateiro toda uma arte poética.
Na penumbra da oficina
“ Quatro anos após Analogia e Dedos (Oceanos), livro que retratou – ora com paixão, ora com ironia – uma galeria de figuras históricas e personagens literários, Pedro Tamen (n. 1934) regressa com um ciclo de 49 poemas que funcionam como um jogo musical de tema e variações sendo o tema a poderosa imagem de um sapateiro que se entrega ao seu mister, cosendo solas e moldando o couro no interior de uma cave escura, talvez irmã da caverna platónica. Se a comparação entre este humilde operário «quase cego» e o poeta só se estabelece de forma explícita no poema 45, quando o primeiro se diz «acocorado como estava o escriba», o certo é que o livro no seu todo se organiza como uma arte poética que busca no esforço do sapateiro um exemplo e uma espécie de ética da criação.
Preso ao «curto escabelo», ele exerce uma «arte calada/de entre cordeiro e leão», fazendo do «sapato/acto» e transformando «o nada que era/no tudo que será». Sempre na primeira pessoa, explica o seu trabalho, o cuidado posto em cada gesto, esse esmero que torna a ferramenta «leve sendo chumbo». E mostra-nos, em grande plano, a mão com os seus «dedos martelados» e unhas sujas, mão «mordida» onde os «pregos doem». É ela, afinal, a ponte entre o mundo do silêncio, negrume e solidão da cave e essa outra realidade que há-de receber a obra feita, a forma em que o sapateiro se revê, imaginando o «impalpável» pé que lhe dá uso e sentido. Por vezes há sons – um violino cigano ao longe ou o «roçagar das nuvens» - que permite, adivinhar os mistérios exteriores. Outras vezes alguém traz lá de fora a «liberdade elástica do ar», despertando no sapateiro e inveja do «vento azul dos montes» e o sonho de recuperar a «giesta» ou «um gosto de cerejas» na boca. Mas é só tocar a pele curtida de animais que um dia viveram livres na natureza que se dá a «lírica explosão» e então «as pastagens verdes irrompem nesta cave/e tudo se ilumina num sol que não está cá».
Tal como o sapateiro se projecta nos sapatos que saem das suas mãos, Tamen projecta-se no sapateiro. E fá-lo com a destreza verbal do costume. Coeso, compacto, com sólidas costuras, este livro é um hino à dignidade dos artesãos e ao brio de fazer, na «penumbra habitada» da oficina, as coisas bem feitas:«neste perdido reduto/em que as mãos amadurecem/a peça que fugirá/das mãos que não merecem/para andar ao deus-dará/num universo de espanto// em que o amor vai curtido,/calado, surdo, tingido/de uma cor que é o sentido/da salvação que acalanto//-aqui me caio e levanto.» José Mário Silva, Revista Ler n.º 90, Abril 2010.
PEDRO TAMEN: Poeta português, Pedro Mário Alles Tamen nasceu a 1 de Dezembro de 1934, em Lisboa.
Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, foi director de uma editora (Editora Moraes) e administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, e co-dirigiu as revistas Anteu e Flama. Leccionou no ensino secundário, fez crítica literária no semanário Expresso e foi ainda presidente do PEN Clube Português, entre 1987 e 1990.
Traduziu Imitação de Cristo, dos Fioretti de S. Francisco, Cantos de Maldoror, de Breton, e ainda outras obras de autores como Sartre, Foucault, Camilo José Cela, Georges Bataille, Georges Pérec, Flaubert e Gabriel García Márquez. Em 1990 obteve o Grande Prémio da Tradução.
Depois de uma crise religiosa, converteu-se ao catolicismo em 1953, não deixando as obras de estreia, em 1956 e 1958, de reflectir uma busca da transcendência, traduzida numa escrita poética fundada na ruptura com a causalidade e com a referência, encontrando no esplendor da própria linguagem o efeito lustral da palavra. Para António Ramos Rosa, "a poesia de Pedro Tamen é um incessante exercício de liberdade que corre o risco de se perder na insignificação total e, por outro lado, uma busca permanente de uma frescura inicial (que é a frescura da dimensão do instante recuperado na sua transparência); e, além disso, não obstante a opacidade negativa de muitos dos seus poemas, é também a reinvenção que, no próprio obscurecimento do sentido, instaura uma possibilidade aleatória, que é já uma esperança e uma vitória sobre o drama existencial" (ROSA, António Ramos - Incisões Oblíquas, p. 91).
A sua obra poética, iniciada em 1956 com Poema para Todos os Dias (Ed. Do Autor, Lisboa) encontra-se reunida em Retábulo das Matérias (Gótica, Lisboa, 2001). Em 1999 foi publicado um disco-antologia intitulado Escrita Redita (poemas ditos por Luís Lucas; Ed. Presença / Casa Fernando Pessoa). Em 2006 a Oceanos publicou o seu livro de poesia Analogia e Dedos. A poesia de Pedro Tamen mereceu já as seguintes distinções: Prémio D. Dinis (1981), Prémio da Crítica (1991), Grande Prémio Inapa de Poesia (1991), Prémio Nicola (1997), Prémio da Imprensa e prémio PEN Clube (2000).
É de ir!
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