Saturday, April 01, 2006

UMA NOITE DE INSÓNIA, UM CONTO HISTÓRICO DO 25 DE ABRIL ESCRITO POR JOSÉ ALBERTO VASCO

Ao Capitão Fernando Salgueiro Maia,

exemplo único entre os militares de Abril.


Nessa mesma noite não conseguiu dormir. Nem durante uns breves minutos ou segundos. Passou todo o tempo de que dispunha sentado. Na sua cama de quase todas as noites. Consumindo cigarro atrás de cigarro. Lá fora, as pessoas, ou pelo menos a sua grande maioria, pareciam felizes. Mesmo muito felizes.

- Talvez até felizes demais...

Estava agora muito atormentado. Por autênticos pesadelos. Terríveis. Que, contudo, não eram pesadelos vulgares. Mas sim uma completa e complexa imagem da realidade. A mesma realidade que agora tornava tantas pessoas tão felizes. Essa mesma realidade que ele não queria. Ou não pretendia agora reconhecer. Estava perdido. Total e completamente perdido! Ele, que sempre se considerara praticamente intocável.

- E inatacável.

Era agora um homem marcado. Um provável alvo a abater. Para muitos dos que àquela hora lá fora sorriam. Comemorando o que durante tantos anos lhes parecera impossível. Entre duas agora pouco consoladoras passas num cigarro extra longo americano, de contrabando, ele pensava, durante aqueles soturnos instantes, na enorme, e muitas vezes inocente, quantidade de pessoas que as suas delações haviam contribuído para ser detidas e aprisionadas. Ser delator ao serviço de uma causa política não lhe parecia já tão honesto e necessário como antes. Numa noite em que pela primeira vez meditava, e tentava reflectir, sobre a triste sorte daqueles que enviara para as penitenciárias do regime político que até então defendera. Até à mais pura exaustão. Lembrava-se agora também das pessoas, por vezes algo simpáticas, que o seu testemunho mandara para a prisão ou para a tortura. E até mesmo para a morte. Lembrava-se ainda, vagamente, de um jovem estudante de Direito que enviara para a morte num desafortunado dia de chuva. E até mesmo de algumas das suas primeiras e talvez cândidas vítimas. Através de cuja denúncia tentara mostrar-se mesmo forte.

- E merecedor de inteira confiança!...

Nos seus primeiros tempos de serviço para a polícia política. Que desde então tão empenhada e devotadamente servira. Tal como o seu país. Que agora parecia virar-lhe as costas. Provocando uma autêntica desordem. Por tudo quanto era sítio. Parecia que toda a gente tinha perdido a cabeça. Nem a chuva os incomodava.

- Cada vez entendo menos esta gente.

-Talvez se te mostrasses um bocadinho menos egoísta...

- Adoro dissecar estas raízes, sabias?

Rira-se a bom rir. Cerca de um mês antes. Quando alguns jornais haviam publicado aquela incrível notícia. Segundo a qual fora encontrado, em plena selva filipina, um descontrolado oficial japonês que ainda não sabia que a Segunda Guerra Mundial havia acabado. Alguns dias depois, parecera-lhe ter também perdido cerca de trinta anos da sua vida. Quando soubera, e fora colocado em campo, para ajudar a tentar contrariar e neutralizar um algo inesperado levantamento militar. Contra o regime político que ele mesmo servia. Tão dedicadamente.

- Como podiam aqueles militares ser tão ingratos contra quem tanto fazia por si?

Contudo, o regime respondera bem. E depressa. Felizmente. Tudo se recompusera. A paz regressara. Provavelmente a todo o país. E o seu testemunho fora mais uma vez importante. E imprescindível. No apuramento e aniquilação dos responsáveis. Tal como em Janeiro. Quando mais uma vez dera uma boa contribuição ao seu país.

- E ao seu legítimo regime político...

Dessa vez em Lisboa. Quando alguns mal agradecidos estudantes do Instituto Superior Técnico haviam ordenadamente hostilizado o governo da nação. Parecia-lhe terrível que aqueles meninos bem, filhos de gente rica, se comportassem tão mal. Face a governantes que os tratavam tão bem. Apesar da tal guerra colonial... Interviera também, durante todo esse mês, para ajudar a tentar encontrar os perigosos responsáveis e incitadores de uma autêntica vaga de greves operárias. Que assolara grande parte do país. Pareciam-lhe todos possuídos por uma irresistível loucura.

- Como seria possível que esses trabalhadores mostrassem sentir-se tão mal, numa nação que os beneficiava com uma vida tão calma e ordenada?

E porque é que aquela turma da Escola Comercial e Industrial de Leiria se solidarizara com esse movimento, fazendo também uma greve, acto muito justamente proibido por lei? Estava agora algo pessimista. Já não se ria a bom rir. Estava a tornar-se um pouco céptico. E os portugueses pareciam-lhe andar tão descontrolados e desorientados como o tal oficial japonês que fora encontrado nas Filipinas. Porém, parecia-lhe que ainda havia alguém com perfeito juízo. Na capital do Império Português, fosse lá isso o que fosse. Aqueles notáveis e importantes oficiais das nossas Forças Armadas. Que pouco tempo antes haviam reconfirmado, pública e devotadamente, a sua fidelidade ao Presidente do Conselho. Uma das figuras máximas da nação. Embora ele mesmo, muito secretamente, não confiasse muito nesse tal Caetano. Que era uma pessoa inteligente de mais para o seu gosto. Contudo, gostara muito da reprimenda, e da lição, que esse mesmo Caetano dera. Sem pestanejar. Na televisão. Aos ingratos compatriotas que se mostravam tão insatisfeitos e descontentes com o seu governo.

- E com a calma vida que este lhes proporcionava...

Voltou a sorrir, algo ironicamente. Pois dessa vez, o tal Caetano, de quem ele sempre suspeitara levemente, ainda mal sabia que essa acabaria por ser a sua última conversa em família. Com uns portugueses que, afinal, pareciam também não gostar nada dele. Nem do seu governo. Nem da tal guerra colonial. Nem da repressão. Nem do atraso do seu país face ao mundo civilizado. O seu riso transformara-se mais uma vez em choro. De raiva.

Essa revolução, golpe de estado ou lá o que quer que fosse, surgira mesmo na pior altura. Agora que tudo lhe parecia devida e quase definitivamente encaminhado para uma vida melhor.

- E muito mais desafogada.

Acontecia-lhe uma coisa destas, a ele, que até nem era agente ou inspector. Mas apenas um servil e dedicado informador. Cujo grau de responsabilidade sempre lhe parecera qualitativamente inferior. E quase insignificante. E enfim, segundo o que se sabia e fazia publicamente notar, as piores consequências da sua subtil actividade policial, além de lhe parecerem necessárias e imprescindíveis à vida do seu país, pareciam-lhe também de ínfima gravidade face à actividade das polícias políticas dos países cujos sistemas políticos eram defendidos e apregoados por muitos daqueles que as suas informações denunciavam. As suas vítimas pareciam-lhe, segundo esse seu ponto de vista, de muito menor importância que as do K.G.B. soviético ou as dos guardas vermelhos da Revolução Cultural chinesa. Quer em termos de quantidade, quer na qualidade dos castigos físicos e psicológicos que lhes eram infringidos nas prisões políticas. Tudo isso lhe parecia uma simples maneira de mostrar autoridade.

- Mas seria mesmo possível, e desejável, aferir a violência e as maiores atrocidades em termos de pura estatística?

E até mesmo a memória de recentes e cruéis actividades de prisão e tortura política infringidas a muitos convencidos e assumidos revolucionários de um país, por gente do seu lado. Como os mais perversos esbirros do exército chileno, liderados pelo seu novo, cruel e mítico herói Pinochet, lhe parecia poder atenuar o mal que ele próprio fizera a tanta gente. Absorvido nesta espécie de reflexão catárquica, mal notava que o fumo do tabaco se continuava a avolumar dentro do seu quarto. Dando a este um aspecto quase tão sinistro como o das prisões, salas de interrogatório e salas de tortura para onde mandava os seus inimigos políticos. Agora, até mesmo o volátil fumo dos seus cigarros parecia também acusá-lo dos seus crimes. De um modo quase tenebroso. Sentia-se oprimido e ameaçado. Ele, que durante tantos anos oprimira e ameaçara a liberdade de tantas pessoas. Apenas agora começava a tomar consciência do mal que fizera a tantos outros. Muitos dos quais pareciam cantar agora, lá fora, o raiar de uma libertação que ele mesmo sempre julgara impossível. E algo quimérica. Tal como a muitos deles.

Uma das datas memoráveis da sua vida fora a da primeira vez que se deslocara a Lisboa. Para uma primeira visita, de cortesia, a essa autêntica e algo temível catedral da delação. Onde se situava a sede da sua polícia política. A partir desse dia, passaria a conhecer a pente fino toda essa zona. E quase todo o interior desse odioso edifício. Que lhe parecia tão seguro e indestrutível como o próprio Salazar. Ou o regime político cujas raízes ele mesmo fundara e dirigira. Aí arranjara alguns dos seus melhores e mais fiéis amigos. Com os quais se reunia por vezes.

- Por motivos que tanto poderiam ser de índole política como de simples e pura amizade.

Riam e choravam. Como todas as pessoas. E como todos os polícias. Umas vezes menos. Outras vezes mais. Adorava recordar aquela noite em que haviam jantado em Alcobaça. Há muitos anos. Essa noite em que soubera que a sua polícia política tinha muitos elementos infiltrados nas actividades de muitos agrupamentos políticos oposicionistas. Rira a bom rir, quando nessa noite lhe contaram a história de um conhecido contabilista, residente em Valado dos Frades, que sendo uma figura altamente considerada nos meios oposicionistas, conhecido como um denodado combatente antifascista, fosse lá o que isso fosse, se transformara num dos mais produtivos e influentes informadores da sua polícia política. Naquela região. Muitas haviam sido as suas denúncias. Nunca descobertas pelos seus supostos camaradas oposicionistas. Fora até secretamente premiado pelo regime que aparentemente combatia. Sendo considerado um belo exemplo de dedicação para todos os seus colegas. Inspectores, agentes e informadores. Era também de morrer a rir a história que então também lhe haviam contado. De uma situação de há alguns a essa parte ocorrida nos meios estudantis de Leiria. Uma história cuja principal figura era um insuspeito intelectual. Dito de esquerda. Conhecido professor e reputado fotógrafo.

- Que muito parecia divertir-se, numa sua dedicada actividade de informador da nossa polícia política...

Muitos haviam já sido os estudantes e os seus colegas por si denunciados. O que também fazia dele um apreciado colaborador de um regime político que aparentemente combatia. Gente reles, pensou para consigo. Haveria de voltar a Alcobaça. Por várias vezes. Como daquela vez em que a Companhia de Bailado Verde Gaio actuou na Praça Oliveira Salazar. Mesmo em frente à escadaria principal do Mosteiro. Continuava mesmo a prestar um bom serviço à sua polícia política. E ao seu país. Embora já então lhe parecesse que estava a ficar marcado pela malta da oposição. Gente reles, pensou mais uma vez para consigo. Porém, o que lhe valia era que o governo do tal Caetano se continuava a manter bem firme no seu lugar. Embora não tivesse mesmo gostado nada daquelas eleições de um ano antes. Embora os seus superiores lhe tivessem garantido ser a fingir. Embora a sua acção delatória, após alguns comícios dos tais democratas, lhe tivesse mais uma vez permitido alguns louvores. Pois é. Apesar de tudo, a vida continuava a correr-lhe de feição.

- Apesar de algumas vergonhas.

E daquela história de a sua mulher agora também ter começado a ter a mania de ser social-democrata. Fosse lá isso o que isso fosse. Essas coisas pareciam-lhe boas era para os países ricos. Manias. Portugal parecia-lhe um país demasiado normal e honesto para essas modernidades políticas. Antes sós, que mal acompanhados. Provavelmente, a mulher segredava-lhe essas coisas só para o aborrecer. E para o chatear já lhe chegavam e sobravam os comunistas. E o tal Caetano. E aquela ala liberal, ou lá o que isso era.

- Um belo herbário. Cheínho de folhas. Das mais variadas cores e formas... Isso é que era uma paixão!

- Adoro ver-te limpar essas pétalas. Com tanto cuidado…

Noite fora, o seu pesadelo continuava a atormentá-lo. A ele, homem profundamente religioso. Que não o julgava merecer. Apesar de tudo. Como poderia ser tão mau um homem como ele. Que todos os domingos ia à missa. Tentando não perder pitada das ditosas palavras do seu padre, ou dos seus sermões? Porém, no seu íntimo, parecia agora sentir-se um homem nojento. Um simples delator. Ou bufo. Epíteto com que a chamada malta do reviralho cognomizara gente como ele: os informadores da polícia política. Repentinamente deu um salto na cama. Como se tivesse sido atingido pelo inimigo. Ou se alguém tivesse batido à sua porta para o vir prender.

- Falso alarme!

O que lhe parecera o atroz calor de um ferro em brasa, como aquele que a sua polícia costumava utilizar para torturar os seus presos, era apenas um inocente e inócuo morrão de cigarro. Que o queimara a ele, numa coxa. E parte do seu lençol. Felizmente, o seu requintado colchão florido escapara a este pretenso atentado. Tinha muito orgulho no seu belo colchão de molas. Este, era uma autêntica maravilha. Quando comparado com os velhos e carcomidos colchões das celas das prisões. Onde eram encarceradas as vítimas das suas denúncias. Quase a pão e água.

Nunca gostara mesmo nada dos portugueses que emigravam para o estrangeiro. Também eles lhe pareciam muito mal agradecidos.

- Porque é que aquela gente fugia para a América ou para a Alemanha, se podia viver tão bem no seu próprio país?

Desde que trabalhassem, pensava ele... Parecia-lhe anedótico que tanta gente desse o salto para outros países. Para trabalhar de sol a sol. O que não tinham necessidade de fazer no seu próprio país. Lembrava-se ainda de uma altura em que perseguira alguns emigrantes comunistas. Do centro de Lisboa até um pobre bairro de lata, em França. Nos subúrbios de Nanterre. Aí chegado, sentira-se até algo chocado. E confuso. Ao verificar as miseráveis condições em que aquela gente ali vivia.

- Era por aquela miséria que eles queriam trocar o seu país, o seu Império?

Mas enfim, lá teve mais uma vez de levar o seu trabalho a contento. Apesar de pobres e miseráveis, aqueles homens sempre eram comunistas. Inimigos do seu país, não era? Curiosamente, acabaria por encontrar um deles alguns anos depois, em Leiria, numa das varandas do Ateneu. Então já muito bem vestido e bem falante. Apesar do seu bom aspecto e de parecer bem alimentado, esse emigrante continuava a ser inimigo do seu país. E do seu regime político. Ouvira-o queixar-se e lamentar, em voz alta, o mal, que segundo as suas palavras, a polícia política do seu país fazia em Fuentes de Oñoro. Perto de Vilar Formoso. O mesmo mal que também se dizia terem feito ao General Delgado. Em Villa Nueva del Fresno. Quiçá a Amílcar Cabral. Dessa vez em Conacri. E a tantos outros. Um pouco por todo o seu país. E pelas suas províncias ultramarinas. E acima de tudo, em Lisboa. No tal edifício da Rua António Maria Cardoso. Com vista para o Tejo. E talvez para a morte. Muitas vezes. Lembrava-se também da vergonha por que tinha passado em Londres. Cerca de nove meses antes. Ele, alguns dos seus colegas, e o tal Caetano. Fora mesmo uma autêntica vergonha! Para eles e para o país. Tudo por causa dessa tal história de uns supostos massacres perpetrados pelo exército português em Wiriyamu.

- Bem no meio de Moçambique, do nosso Moçambique...

Parecia-lhe impossível que uma pessoa como o tal Padre Hastings tivesse levado aquilo tão a peito. Mas enfim, o país e o regime lá lhe pareciam continuar a superar toda essa maledicência. Firmemente. Sem medo.

No quarto ao lado, os seus três filhos, todos ainda de tenra idade, dormiam embriagados no seu mundo de beleza e pureza. Pobres e insuspeitas crianças! Que seria delas quando o seu pai fosse finalmente detido, julgado e condenado pelos seus crimes?

- Mas seria que isso se iria mesmo passar?

O fumo do tabaco continuava a invadir todos os cantos do quarto. Transformando-se em seu perfeito cúmplice. Ou acusador. Nessa noite de insónia. Porém, o último cigarro de vários maços fora já por si nervosa e algo descontroladamente fumado. O escape do seu agora tão conturbado sistema nervoso pareciam ser, de momento, as unhas das suas condoídas mãos. Já parecia mais um rato do que um homem. Talvez até nunca tivesse sido digno de ser qualquer um deles. Tinha calor. Muito calor. O fumo do tabaco continuava a abraçá-lo e acarinhá-lo. Numa espécie de última e redentora consolação. Detestava o fumo, era verdade, mas era um autêntico escravo do tabaco. Talvez até em maior grau que o da sua escravidão mental e política ao regime político que durante aquela alvorada se começara a finar. Lá fora, a noite e a revolução, ou golpe de estado ou fosse lá o que fosse, continuavam a sua já indestrutível marcha. As pessoas continuavam também a cantar pelas ruas da cidade. Felizes, mas mesmo muito felizes.

- Parecia estar a nascer um novo país. Talvez uma nova nação. Era algo estranho…

Mas ali, naquele quarto escuro, ele continuava a pensar e reflectir sobre a sua sorte. Contrariamente às outras pessoas ele não se sentia feliz. Antes pelo contrário. Já nem sequer sabia o que havia de fazer. Estava completamente perdido. Reflectia agora sobre o que deveria fazer. Se seria melhor entregar-se no quartel mais próximo. Ou se deveria antes optar por resistir até ao fim. Intimamente ainda pensava ser possível, e desejável, dar-se uma contra-revolução, contra-golpe ou fosse lá o que fosse. Mas não. Isso já não lhe parecia provável. De modo nenhum. A população, agora aparentemente feliz, que durante tantos anos fora tão violentamente oprimida e reprimida, aderira completa e apaixonadamente às movimentações do movimento político-militar cuja acção revolucionária, ou fosse lá o que fosse, a parecera libertar. Quase sem perguntar porquê…

- Talvez para todo o sempre.

Estava cada vez mais assustado. Sentia-se apontado a dedo. Por uma enorme e agressiva multidão. E a mulher? Como iria reagir a tudo isto? A ideia de ser detido, julgado e ir acabar os seus dias numa prisão horrorizava-o. Essa situação até parecia agora algo caricata. Ele, o convicto acusador de ontem, estava agora horrorizado pela ideia de ir parar à prisão! Repugnava-o pensar naquele lugar vazio de sentido. E tão incómodo como tudo o que há de mais incómodo. Situação algo trágica para um homem como ele. Que anteriormente tantos homens supostamente bondosos para lá mandara. Ele, que era mesmo um tipo sem qualquer espécie de sentimentos. Que sentia mesmo algum prazer em torturar outras pessoas. E que era mesmo um incondicional adepto dos regimes ditatoriais de direita. Fossem lá eles o que fossem. Agora, enervava-se ao pensar no seu próprio futuro. E que seria das suas três agora infelizes crianças depois da sua prisão? O seu sistema nervoso estava já intensivamente perturbado. Ainda sentado na cama, arranhava-se a si mesmo. Esfolando a pele. Tendo já os olhos assustadoramente esgazeados. Tinha também os cabelos em total desalinho. Parecendo já mesmo perto da verdadeira demência. Da mais pura insanidade.

Sempre desconfiara um pouco da tropa. Que já há algum tempo lhe parecera estar a entrar em conflito com o sistema político. Parecia nem saberem o que custava ao governo esconder do conhecimento público a gravidade do que se estava a passar nas colónias de África. E se lhe continuava a parecer que o tal Caetano não tinha capacidade para sustentar a situação, a sua esperança mantinha-se ainda do lado dos militares. O Presidente Tomás, homem de confiança, parecia-lhe aguentar-se bem firme no seu posto. Defendendo a Pátria.

- Liderando a nação e o Império.

Pena fora, no final do ano anterior, que uma tentativa de reforço do sistema, encetada pelo insuspeito General Kaúlza, tivesse infelizmente abortado. Provavelmente devido a uma denúncia feita por gente como um tal Major Fabião.

- Mas quem é que esses senhores se julgavam?

Depois fora o que se vira. Após a publicação do tal livro do General Spínola. Tudo parecera começar então a ruir. Tal como o próprio General. E como o próprio país. E, acima de tudo, o nosso próprio Império. Que começara já mesmo a sua implosão. Em Madina do Boé. Parecia-lhe que o mundo estava a parar. Pelo menos o seu. Embora nessa altura o chão também parecesse fugir debaixo dos pés do Presidente Nixon.

- Um dos homens mais poderosos do mundo!...

Talvez, no fundo, a culpa de tudo isso fosse da imprensa. Desses enervantes e horríveis homens dos jornais, das rádios e da televisão. Capazes de tudo. Até mesmo de dizer a verdade. O quem nem sempre convinha. Pelo menos a alguns. Aos seus. O que nem sempre era necessário. Contudo, talvez até lhes desse prazer essa desconstrução do mundo ocidental. Fosse lá isso o que fosse. Histórias como aquela. Da anteriormente raptada Patricia Hearst. Que cerca de uma semana antes assaltara um banco. Juntamente com os seus raptores. Demonstrando, em sua opinião, que neste mundo já poucos mostravam saber qual era o seu lugar. Embora, muitas vezes, o tal Caetano, de quem ele nunca gostara, continuasse a sorrir. Aparentemente confiante. Como se tudo se mantivesse na mesma. Quem sabe se ele não estaria já a par de tudo o que se iria passar?

- Gosto mesmo muito de folhas de plátano. Da sua forma e do seu cheiro. Também adoro gladíolos...

- É pena é nunca parares quietinho.

Depressivas imagens da sua vida passada continuavam a avolumar-se nos seus pensamentos. Espelhando na sua memória alguns momentos que haviam marcado a sua existência. Nem sempre fácil.

- Era de ascendência muito pobre...

Nascera numa desprotegida aldeia do interior. Uma triste localidade onde as frustrações de carácter existencial se iam acumulando diariamente. Depois de alguns anos de fome e de miséria, entrara para a escola primária de uma aldeia vizinha. Cuja frequência o obrigava a percorrer todos os dias, sempre a pé, mais de oito quilómetros. De estrada ruim. A sua infância fora mesmo muito difícil. Toda ela. O ambiente social da sua aldeia era muito pouco humano e civilizado. Essencialmente devido a razões de carácter económico. Praticamente todos os seus habitantes viviam tristes e muito mal humorados. Devido à inumana exploração de que eram vítimas nas duas fábricas de curtumes ali situadas. Únicos locais de trabalho seguro daquela região. Além de uma quase ineficiente agricultura de subsistência. Desde muito novo que sonhara com uma vida melhor. Longe dali.

- Se possível igual à do administrador da maior daquelas fábricas.

Saído da escola, depois de um seu honroso exame da quarta classe, fora trabalhar para a sede do concelho. Como moço de recados de uma repartição pública. Cujo director era um fiel devoto do regime político, ditatorial, então vigente. Nessa repartição começou a tomar contacto com o ideário político daquele regime. Ali diariamente embutido por muitos dos seus novos colegas e superiores hierárquicos. Autênticos homens de mão de um sistema político e social por si, e por muitos, considerado perene. E indestrutível. Aí, a vida correra-lhe bem.

- O melhor possível!...

Frequentara mesmo um curso nocturno. Dedicadamente. O que lhe permitiu passar de moço de recados a guarda-livros num espaço de pouco mais de quatro anos. Embora por vezes ainda recordasse, com alguma tristeza, que fora durante esses anos que o seu pai morrera. Gravemente doente. Sem que ele tivesse sequer podido deslocar-se à sua aldeia natal para assistir ao funeral. Devido a falta de meios financeiros para esse efeito. Tinha agora dezanove anos de idade. E já era mesmo um homem com grandes responsabilidades! Foi nessa altura que lhe surgiu aquela mirífica conversa. À porta fechada. Para a qual fora convidado pelo seu chefe de repartição. E por um dos chefes de secção da Câmara Municipal. Essa conversa prometia. E a verdade é que a sua principal motivação fora uma tentadora e irrecusável proposta. Então apresentada por ambas aquelas individualidades. Convite que aceitou quase sem hesitar. Meteoricamente.

- O que muito agradou aos seus dois novos amigos.

Era realmente a sua grande oportunidade de começar a ser alguém. Significando, indubitavelmente, que a partir dessa data poderia mesmo começar a ter uma vida melhor. Em termos sociais e financeiros. À custa de pouco trabalho. E de apenas alguma dedicação à única vida política então possível e legalizada. Bastava-lhe estar atento às personalidades da oposição. E às suas suspeitas movimentações. Fazer umas denunciazitas de vez em quando. E, por vezes, alguns trabalhinhos especiais. Encomendados pelos amigos dos seus novos amigos. O que lhe parecia perfeitamente saudável. E destinado ao bem da sua nação.

A sua vida de informador da polícia política tinha sido quase sempre marcada por algumas surpresas. Umas vezes melhores, outras piores. Na véspera da noite fatal, a que antecedera a revolução, golpe de estado ou fosse lá o que fosse, tinha decidido tirar uma noite de folga. Comprara um bilhete para ir ao cinema.

- Sozinho, como quase sempre.

Escolhera ir ao Condes. Ver O Esquadrão Indomável, um filme de guerra. Mal ele sabia que a exibição daquele filme em Lisboa, naquela época, era um insuspeito prenúncio do que acabaria por suceder. Infelizmente para si e para os seus colegas. Que eram tudo menos seus verdadeiros amigos. Porém, quase ao fim dessa tarde, os seus planos acabariam por ser subitamente alterados. Por ordens superiores. Oriundas do seu quartel-general. Fora-lhe ordenado que nessa mesma noite se deslocasse ao Coliseu dos Recreios. Que, afinal, até nem se situava muito longe do destino por si antes programado. Só que em vez de se ir divertir, fora convocado para ir trabalhar. Além disso, essa mudança de planos significava também uma mudança de ambiente. Ou de ambiência. Do cinema, passava, desse modo, para a ópera.

- Não por sua vontade, mas apenas porque lhe mandavam vigiar tudo o que naquela noite iria fazer um conhecido elemento da oposição.

Um bem sucedido advogado. Que além de comunista era também melómano. E que mandara comprar bilhetes, para si e para a sua jovem esposa, para o espectáculo dessa noite. À hora marcada, lá estava ele. No átrio do Coliseu. Esperando pelo aparecimento do tal oposicionista. Que apenas apareceu quase à hora do início do espectáculo. Convicto de que os serviços da sua polícia política eram bastante eficientes, entrou na plateia. Sendo encaminhado para o seu lugar na sala. Aí, confirmou as suas convicções e expectativas. Políticas e logísticas. O lugar que lhe haviam destinado na sala situava-se precisamente atrás dos lugares das pessoas que o haviam mandado vigiar.

- Aquilo é que era saber trabalhar! Pelo bem da nação...

Contudo, o perigoso casal manteve-se calado durante todo o espectáculo. Talvez por cuidado. Talvez por gostar mesmo muito de ver e ouvir o que nessa noite se passava no palco do Coliseu. Era certo que ele nada percebia de ópera. Que até lhe parecia um género de espectáculo decadente e aborrecido. Embora nessa noite o público que enchia a sala tivesse aplaudido entusiasticamente uma tal La Traviata. Composta por um sujeitinho chamado Verdi. Italiano. Nascido em Roncole. Essa fora mesmo uma noite triunfal para os principais solistas daquele espectáculo. Uma tal Joan Sutherland. E um tal Alfredo Krauss. Que, pelo entusiasmo com que haviam sido aplaudidos, e até mesmo vitoriados pelo público, se deviam ter mesmo saído muito bem nas sua interpretações. Depois do espectáculo, continuou o seu trabalho de vigilância. Seguindo todos os passos dados pelo casal. Que, contudo, nessa noite se pareceram limitar a assistir àquele espectáculo. E a cear, seguidamente, numa recatada mesa do Galeto. Sem falar com mais ninguém. A não ser eles mesmos.

- Que até trocaram enternecidos sorrisos e beijos entre si, enquanto ceavam...

Chegou a invejá-los. Durante uns breves segundos. Enquanto comia o seu terceiro rissol de camarão e beberricava a sua segunda imperial da noite. Preta. Mas trabalho era trabalho. E ele lá continuou. Seguindo-os depois até casa. Aí entraram os dois. Aparentemente felizes. Bem abraçados e continuando a trocar alguns beijos. Parecia que naquela noite ambos tinham colocado as questões políticas de lado. Talvez por amor, quem sabe? Por ali continuou. Sem que se tivesse passado mais nada de especial. Nem durante as duas horas seguintes. Durante as quais foi vigiando a parte exterior da residência. Sem que ninguém dela tivesse saído. Ou entrado. Até que um colega o veio substituir. Pediu-lhe um cigarro. Encaminhando-se para a Rua António Maria Cardoso. A pé. Ao subir a Rua do Carmo, deteve-se, durante alguns breves minutos, em frente à montra principal da Discoteca Melodia. Sorriu levemente, quando reparou que ali estavam expostos alguns exemplares do disco E Depois do Adeus. Cantado pelo Paulo de Carvalho. Ainda nesses momentos mal sabia que aquela canção já contribuíra, através dos Emissores Associados de Lisboa, para começar a alterar, definitivamente, a sua vida. Como senha de uma tal Operação Fim de Regime. Fosse lá isso o que fosse. Porém, do que se lembrava agora, era que essa canção, e o seu próprio país, ou nação, fosse lá isso o que fosse, haviam sido pública e politicamente enxovalhados. Num Festival da Eurovisão.

- Mais uma vez ficáramos, sem honra nem glória, classificados em último lugar.

E a canção até era boa. Segundo se dizia. A Europa, ou fosse lá o que fosse, é que parecia não continuar a querer nada connosco. Mas enfim, o Salazar, o Eusébio e a Amália ainda iam chegando para eles. Tal como os gajos do hóquei em patins. De vez em quando. Quando chegou às imediações do quartel-general da sua polícia política sentiu-se algo estupefacto. Reparou que havia por ali muita movimentação. Nervosa. Algo de estranho e inesperado se estava a passar. Ainda se lembrou de perguntar a um desconhecido, que então passava na rua, qual fora o resultado do Sporting.

- Que jogara, ao fim da tarde anterior, contra os alemães do Magdeburg.

Ficou a saber que os leões haviam perdido. Por dois a um. Mas isso agora já pouco lhe interessava. Algo de mais importante se estava a passar, fosse lá isso o que fosse. Alterou o seu percurso. Mas não o seu rumo. Dirigiu-se para Alfama. Apressadamente. Sem deixar o seu fado. Nem a sua sina. Que essa talvez se cumprisse do lado de lá do Tejo.

Tinha já comemorado o seu vigésimo aniversário no dia em que recebeu o seu primeiro ordenado suplementar. Devidamente acompanhado pela sua primeira gratificação de reconhecimento político. Tendo há alguns anos conhecido, e travado amizade, com alguns jovens que posteriormente se tornariam maoístas, conseguira integrar-se no seio das suas movimentações políticas oposicionistas.

- Fingindo tomar nelas uma parte bem activa e empenhada.

Após três meses desse seu primeiro grande serviço político, já ele informara os seus superiores de toda a actividade daquele grupo. Treze jovens militantes anti-regime foram então presos, interrogados, espancados e torturados. Embora tudo o que a polícia política tivesse sabido sobre a sua actividade fosse apenas a sua empenhada militância. Quase de inspiração clubística. E o facto de terem concebido e divulgado uma série de comunicados de oposição à guerra colonial, ao governo e a alguns dos seus ministérios. Perfeitamente insensível a esse facto, o informador que causara tudo isso sentira-se plenamente satisfeito. Com essa sua delação. Sorriu levemente. Ao recordar que então começara a subir na vida. Sem grandes dificuldades. Decididamente.

- Como sempre desejara...

Dois anos depois, já então colocado na honrosa posição de sub-chefe da sua repartição, haviam-lhe arranjado casamento com a afilhada de um abastado comerciante da província. Filha de um empreendedor agricultor do concelho onde agora trabalhava e vivia. Tudo lhe corria bem. E alguns anos depois adivinhava-se já uma sua provável candidatura a deputado. Num daqueles actos eleitorais então vigentes. A que a oposição e alguns dos seus vultos mais importantes eram impedidos de participar e concorrer. Garantindo-se desse modo a eleição directa dos candidatos propostos nas listas do próprio regime político vigente. Já trintão, tinha agora dinheiro, bens imóveis, posição social e três filhos traquinas que partilhavam a sua felicidade.

- Que mais poderia exigir da vida, depois de ser eleito deputado?

Porém, nem tudo eram rosas. E agora, devido à provável queda do seu tão adorado governo da república, era provável que a organização policial de que fazia parte começasse também a ser extinta. E todos os seus elementos a ser detidos. Para apuramento de responsabilidades. O que poderia ser mesmo muito complicado. Parecia agora que tanto ele como todos os seus pervertidos colegas, superiores e subordinados iriam acabar por ser castigados. Aprisionados nas caves escuras dos cárceres para onde ainda dois dias antes mandavam os outros, ou seja, todos os supostos inimigos do seu regime político. Triste sorte.

Naqueles primeiros anos da década de setenta, o trabalho da sua polícia política havia-se diversificado cada vez mais. Não só para os informadores, mas também para o seus agentes, inspectores, ou fosse lá quem fosse. Havia-se mantido como informador. Durante todos esses anos. Dado que a sua profissionalização como agente nunca o havia interessado.

- Havia alguns tipos de acção de que, apesar de tudo, não gostava.

Um deles eram as violações de correspondência. Directamente ordenadas pelo governo. A que aqueles agentes eram obrigados a corresponder. Além de aborrecido, parecia-lhe penoso estar a coscuvilhar a vida privada de muitas pessoas. Mesmo que elas fossem declaradas inimigas do regime político que tão orgulhosamente defendia. Parecia-lhe até muito pior que violar os domicílios dessas mesmas pessoas. Durante a madrugada. Dado que nesses casos, muitas vezes, era a essas horas e nesses locais que elas planeavam os seus perigosos actos de contestação. Muitas vezes armadas. Apesar de muitas vezes, nesses casos, a opinião pública acabar por culpar os próprios funcionários dos correios por essas violações de correspondência. Como era o caso do seu próprio irmão. Carteiro. Que já fora algumas vezes incomodado por algumas pessoas da sua aldeia.

- Embora estivesse inocente. De todo...

Agradavam-lhe muito mais as acções de vigilância. Disseminadas por diversos pontos do continente. Ou até mesmo pelas províncias ultramarinas. Pelo menos, nesses casos, sempre passeava um pouco. À conta do Estado. Fosse lá isso o que fosse. A sua principal zona de trabalho informativo era o centro do país. Estreara-se em Alcobaça, em 1971, numa Feira do Livro. Haviam- no incumbido de verificar o que ali se iria passar. Essas feiras do livro eram sempre consideradas, pelos seus superiores, um perigoso local de concentração de inimigos do seu regime político preferido. E de livros. Muitos livros. Perigosos.

- Alguns deles veiculadores de maledicência e má-fé contra o regime de Salazar e Caetano!...

Embora achasse injusto juntar aqueles dois nomes. Dado nunca ter gostado muito deste último. E gostava sempre muito de ir a Alcobaça. Dormia nos Corações Unidos. Mesmo no centro da vila. E deliciava-se, inteiramente, com as suas deliciosas doses de frango na púcara. E com os belos queijinhos frescos da região. Nessa Feira do Livro de Alcobaça, talvez a primeira, ainda conseguira passar praticamente despercebido. E haviam-lhe sucedido situações curiosas. Como aquela por que passara junto a um dos pavilhões. Quando dois jovens ali haviam perguntado, com o ar mais inocente deste mundo, se lhes podiam vender Os Clandestinos de Fernando Namora. Romance então recentemente publicado. O empregado percebera mal e respondera-lhes, furtivamente, quase em surdina, que livros clandestinos, ou proibidos, só os conseguiam vender a partir da meia-noite. Às escondidas...

- Depois do encerramento nocturno da feira...

Sem se aperceberem sequer que quase junto a eles estava um informador da polícia política. Era assim que muitas vezes aquela gente se descaía. Para bem da nação. Fosse lá isso o que fosse. No final do ano seguinte, fora destacado durante alguns dias para Cascais. Aí, tudo parecia poder ser muito pior. O que acabou por se confirmar. Era o primeiro Festival de Jazz apresentado em Portugal. E aquela bonita vila fora quase completamente inundada por pessoas que ali estavam muito mais por ali verem uma possibilidade de contestação aberta ao governo, que pelo seu gosto pela música negra. Embora ali estivesse também presente muita gente que gostava de jazz. E dos seus grandes ídolos. Como Miles Davis, Thelonious Monk ou Ornette Coleman. Que ali iriam estar em palco. Bem vivos. E foi durante a actuação deste último, saxofonista, que se deu a grande bronca. Quando apresentava um dos seus temas, dedicado ao revolucionário Che Guevara, o contrabaixista Charlie Haden dedicou a interpretação daquele tema, naquele concerto, aos movimentos de libertação que então lutavam pela independência das províncias ultramarinas portuguesas.

- Seguiu-se um autêntico pandemónio! Com uma enorme multidão a saudar efusivamente aquela dedicatória!...

Parecia que toda aquela gente detestava a guerra colonial. E a vibrante luta das forças armadas do seu país pela manutenção do seu Império. Fosse lá isso o que fosse. Gente ingrata! Pensou. É claro que a situação seria posteriormente resolvida. A contento. Pela sua polícia política. E o tal Charlie Haden acabaria por ser detido, interrogado e expulso do país. Depois do concerto. A bem da nação. Em vinte e dois de Fevereiro desse mesmo ano de 1974, haviam-no mandado deslocar-se para Lisboa. Para as imediações do Campo Pequeno. Parecia que algo de muito grave estava para acontecer. Segundo lhe parecia com o consentimento do próprio Caetano.

- De quem nunca gostara...

Assistiu, impávido e impotente, à chegada de um senhor, um tal Paradela de Abreu, à entrada da Livraria Apolo 70. Trazendo consigo algumas pessoas. E alguns milhares de exemplares de um novo livro. Escrito pelo General Spínola. Militar que ultimamente começara também a detestar. Centenas de pessoas pareciam esperar, na própria rua, por algo de apocalíptico. Talvez o lançamento desse mesmo livro. Em poucas horas, gerou-se ali um autêntico pandemónio oposicionista. Mais um. Essa primeira edição desse livro esgotar-se-ia quase como que por um toque de magia. A partir dessa data o seu país nunca mais voltaria a ser o mesmo. Pareceu aperceber-se desse facto. Mas continuou a tirar os seus apontamentos. Tão preciosos como a sua vida. A bem da nação.

Nesta sua tão penosa noite de insónia, continuava a não conseguir adormecer.

- Nem por uns breves minutos ou segundos.

Continuando a recordar, algo meteoricamente, toda a sua vida. Ainda envolto na fumarada dos cigarros que já há algumas horas se lhe haviam acabado. Diluindo-se quase tão apressadamente como o regime político que agora ruía. Calculava ser detido na manhã seguinte. Lera-o nalguns jornais. Ouvira-o na rádio e na televisão. Sentido-se cada vez mais aterrorizado e acossado perante essa evidente probabilidade. E depois? O que se passaria? Já ouvira dizer, ou teorizar, que o novo regime iria instalar no seu país aquela coisa, para si algo incrível, a que chamavam um estado de direito. Fosse lá o que isso fosse. Certo, certo, é que sabia também que muitos dos que agora glorificavam a nova situação política, noite fora pelas ruas da sua pequena cidade, também não seriam, provavelmente, grandes defensores do tal, e algo messiânico, estado de direito. À imagem ideológica e à praxis dos países cuja ideologia, revolucionária, tanto defendiam. Talvez o tal estado de direito até lhe permitisse alguma defesa. Sabia-o já há algum tempo. Mas era certamente provável, e inevitável, que o iriam julgar. Punindo-o por todo o mal que durante tantos anos fizera a muitos outros. Incluindo alguns dos seus velhos amigos. Atitude que, contudo, nunca o incomodara. Nem agora.

No princípio do ano discutira mais uma vez com a mulher. Ela pretendia que os dois fossem passar alguns dias de férias às Caraíbas. O preço, quarenta e dois mil escudos para os dois, parecia-lhe acessível para o seu orçamento familiar. Porém, ele não estava de acordo. Dizendo-lhe que a sua actividade laboral e a sua actividade policial não lhe permitiam essa possibilidade. Mais uma vez a sua opinião não foi compreendida. Nem a sua posição. E a discussão atingira mesmo um ponto bastante difícil. Quando ela lhe chamara, alto e bom som:

- Assassino!

Algo que nunca fora. Mas para o que dera alguma contribuição. Muitas vezes. Trocaram mesmo algumas chapadas entre si. Sem os miúdos disso se aperceberem.

- Poucos minutos depois, tudo se acalmou, mais uma vez.

E o seu lar, fosse lá isso o que fosse, voltou à sua habitual paz podre. Bastante podre. Nessa mesma noite, sozinho na sala de estar, meditou sobre o que ela lhe chamara. Sabia que em cerca de quarenta e oito anos, o regime político fundado e desenvolvido por Salazar mandara prender mais de trinta mil pessoas. E das suas torturas pouco se sabia. Ou pouco se queria saber. De entre todos esses milhares de vítimas havia alguns que ainda haviam tido pior sorte. A da morte. Cerca de trinta. A maior parte das vezes no Tarrafal. Lugar de má sorte. E de morte. Em dada altura, há cerca de três anos, haviam-lhe oferecido um novo emprego. Na Sacor. Porém, não lhe agradou mudar-se para a maior empresa do seu país. Embora esse novo emprego fosse também um emprego limpo. De fato e gravata.

- E muito bem pago!

Agradar-lhe-ia bem mais mudar-se para a TAP. Ou para a CUF. Onde tinha algumas pessoas conhecidas. Mas a sua repartição era já quase como a barriga da sua mãe. Um lugar calmo e ordenado. E fora daí, quem é que ele conhecia? Apenas a mulher, apesar de tudo, os belos filhos, os sogros e polícias. Muitos polícias. Quase todos à paisana. Escondidos. Refugiados nos seus próprios medos. E nas suas denúncias. E, acima de tudo, não pretendia abandonar o andar que tanto adorava. Que comprara na sua nova cidade. Por quatrocentos e poucos contos. Cerca de metade do que então lhe custaria um andar em plena Lisboa. Embora desde finais de Março lhe custasse um pouco frequentar a única cafetaria da terra onde se acolhera. Zeca, o filho do dono desse café, era um dos poucos amigos que conservava desde a sua juventude.

- Desde os saudosos tempos da escola primária...

Porém, ultimamente, essa amizade dera lugar a alguma desconfiança. Desde aquela cinzenta tarde em que fora vigiar os grevistas da Petroquímica. Na qual estivera mesmo frente a frente com o Zeca. Surpreendido por ele ali estar. Supostamente do outro lado da barricada. Possivelmente nunca mais voltariam a encontrar-se. E quando o seu antigo, e agora perdido amigo, saísse da prisão de Caxias, se alguma vez de lá viesse a conseguir sair, como é que o conseguiria encarar? Mas tudo bem. É assim a vida.

- Uns ganham. Outros perdem...

Embora ainda recordasse alguns bons momentos passados em conjunto com o Zeca. Como a insidiosa e memorável bebedeira que quatro anos antes ambos haviam apanhado. Numa bela jantarada na Churrasqueira do Campo Grande. Em que se haviam banqueteado com umas enormes e saborosas costeletas de vaca. Grelhadas. E com um belíssimo vinho tinto. Nacional. Como não podia deixar de ser.

- Após terem assistido a um dos espectáculos então dados em Lisboa pelo Circo Nacional de Moscovo.

Embora ali se tivesse deslocado ao serviço da sua polícia política. Sem que o seu grande amigo disso tivesse sequer suspeitado. Tanto mais que nessa mesma noite lhe contara as suas simpatias socialistas. Recentes. Sem que tivesse sido denunciado. Pelo menos dessa vez.

A manhã começava a alvorecer por detrás do cume das montanhas e vales que circundavam a cidade que acolhera a sua vida adulta. Era o nascer de um dia que ficaria tristemente célebre na sua vida.

- Uma espécie de princípio do seu próprio fim. Quiçá da sua vida. Quem o poderia já saber?

Durante toda a noite não pregara olho. Por um fugaz segundo que fosse. Acabara-se-lhe o tabaco. E roera já todas as unhas. Bem como grande parte da pele dos dedos de ambas as mãos. Deixando a sua própria carne exposta ao ar que ele durante tantos anos contribuíra para negar a muitos outros. O escape da sua fúria nervosa era agora o delicado e bonito lençol de algodão que ornamentava a sua cama. Que começara já também a roer. Desenfreada e desordenadamente. Sentado no chão, a um canto do quarto. Parecia quase louco. E talvez já o estivesse. Nem dera pela ausência da mulher. Que se ausentara. Não se sabe para onde. Nem como. Um retrato devidamente emoldurado do seu herói Salazar, que orgulhosa e convictamente costumava apresentar a toda a gente como um perfeito e autêntico modelo de virtudes, estava também presente naquele quarto. Ao lado de uma fotografia do seu casamento. Numa parede fronteira aos pés da cama. Parecendo sorrir de escárnio ao olhar a figura de alienado mental agora ali encarnada por aquele seu antigo e dedicado servidor. Pela primeira vez reparou bem nessa fotografia. A preto e branco. Do grande patife que tanto adorava. Apercebendo-se, levemente, de que aquela odiosa criatura não tinha o aspecto desenxovalhado dos homens bons. Porém, ali naquele quarto, Salazar parecia continuar a rir-se dele.

- E da sua desgraça...

A moldura de estanho com uma fotografia da mulher, que estava arrumada na sua mesa-de-cabeceira, acabou por percorrer velozmente o espaço físico e psicológico que a separava do retrato do grande ditador. Ferozmente atingido, este caiu no chão. Totalmente desamparado. Parecendo chorar de raiva.

Pouco mais de um ano antes, em Janeiro de 1973, tivera uma das suas últimas grandes alegrias. Quando Sá Carneiro renunciara ao seu lugar de deputado. Da tal ala liberal. De tão má memória. Para si. Ainda hoje lhe parecia de muito mau gosto aquela fatídica atitude do tal Caetano. Que sempre detestara. Essa sua ideia de tentar liberalizar o regime. A tal renovação na continuidade. Que permitira a entrada no Parlamento a um grupo de estranhos deputados.

- Desabocados contestatários do próprio regime que lhes abrira as portas!...

Pois era. Andava ele e os seus colegas a dar o melhor de si, para defender o país dos seus inimigos. Mas acabava por ser o próprio chefe do governo a dar-lhes guarida. E voz. Tão pública como para si desnecessária. E perigosa. Não é que o tal Sá Carneiro se aproveitava do seu lugar para atacar o próprio regime que o alimentava? Essa história de integrar os tais independentes em lugares elegíveis das listas da União Nacional sempre lhe parecera muito esquisita. Andava ali o dedinho do novo presidente da comissão executiva do partido. Do único partido. O seu.

- Também nunca gostara desse tal Melo e Castro.

E se o tal Caetano nunca lhe parecera um homem de confiança, o que dizer desse seu tão influente amigo? Que lhe transmitira a infeliz ideia de levar aqueles homens para a Assembleia Nacional. Fora aí que certamente começara a sua desgraça. E a do país. Já não lhe bastavam os comunistas. E os outros. Agora eram também os próprios políticos eleitos pelo regime que se deleitavam a atacar publicamente a sua própria polícia política. Chegando ao ponto de denunciar as suas torturas e a sua violência sobre os inimigos do regime. Seria isso mesmo possível? Como é que o governo da nação permitia uma arbitrariedade dessas? Que os seus próprios homens atacassem quem os defendia. De alma e coração.

- Esperariam esses imprevidentes que se a situação mudasse e o governo caísse essa gente do reviralho os iria tratar condignamente?

Pois era. Mas o tal Sá Carneiro parecera-lhe continuar de pedra e cal. No seu posto. Ele e todos os outros. Que não eram melhores. Antes pelo contrário. O que seria deste país, do seu belo país, depois de entregue a gente como esse Carneiro, esse Balsemão, esse Mota, esse Pinto Leite ou esse Miller Guerra... Como é que eles iriam aguentar-se contra os comunistas e os socialistas? E certamente que até os monárquicos se iriam aproveitar para regressar quase vitoriosos ao poder. Mas eles lá iam continuando na Assembleia Nacional.

- A falar pelos cotovelos...

Defendendo coisas tão perigosas como o restabelecimento das liberdades fundamentais. E até mesmo que o país reabilitasse as suas boas relações com a Europa. Dita democrática.

- Era o que mais faltava! Andarmos de braço dado com esses finórios do Norte da Europa!...

Os tais social-democratas. Gente oleosa. Bem vestida de mais para o seu gosto. E culta. O que era mesmo bastante perigoso. Não se podia mesmo confiar nessa gente. Nem nos de fora nem nos de dentro. Só o suspeito e descuidado Caetano, talvez adormecido, ainda lhes ia aparando os golpes. Inocente. Ou talvez não. Não estaria ele também de acordo com essa terrível proposta da tal ala liberal? Essa de reformar as universidades. Talvez também de dar voz aos inimigos do regime que nelas se abrigavam. Isto parecia-lhe cada pior.

- E ainda por cima não permitiam à sua polícia fazer nada contra isso...

Parecia-lhe cada vez mais difícil um regresso aos bons velhos tempos do Salazar. Numa época em que até já o próprio Papa se dava ao luxo de nos ofender. Pública e universalmente. Como quando em 1970 recebera em audiência os principais dirigentes dos movimentos de libertação das nossas colónias de África. Esses malvados terroristas que tentavam roubar-nos as nossas províncias ultramarinas. E uma grande parte do nosso passado. E da nossa História.

- Estaria toda essa gente completamente doida?

Como o tal Padre Hastings. Que denunciara perante todo o mundo algo que talvez nunca tivesse existido. Os tais massacres de Wiriyamu. E o que dizia o tal Sá Carneiro contra tudo isso? Nada. Continuava a preferir morder a mão a quem lhe dava de comer. Também ele era um ingrato. Ele e os seus companheiros. Os tais liberais. Que cada vez mais lhe pareciam pretender ser os principais coveiros do seu próprio regime. Que tanto custara a erguer e sustentar. A gente como ele. E aos seus anónimos colegas. Por mais velhacos que alguns deles fossem.

- Bons portugueses. Cada vez mais raros...

Restava-lhe, cada vez mais, a memória do passado. Ainda não muito distante. Quando todo o país andava na linha. Sem alas liberais, nem renovações na continuidade. E até mesmo sem aquela também tão mal pensada liberalização do mundo sindical. Que permitira o eclodir de um novo ciclo de greves. Pois era. O tal Caetano não parecia acertar uma.

- E a malta do reviralho continuava a aproveitar-se disso.

Porém, felizmente, ainda havia alguém atilado e consciente no seio do próprio regime. Para bem da nação. Como soía dizer-se. Alguém que começara a apertar os calos ao tal Sá Carneiro. Que já começara mesmo a contestar publicamente a orgânica das próprias eleições. E a sua organização. E até mesmo o próprio recenseamento. Mas a mando de quem? Porém, o país acabaria por acordar desse pesadelo. Quando o homem se demitira de deputado. Finalmente. Então tudo lhe parecera voltar a entrar nos eixos. Apesar do Caetano. Da guerra. Da miséria. Da repressão. E sabe-se lá de que mais.

- Nesse dia tínhamos ido comprar rosas brancas. E um braçado de magnólias.

- Nunca tinha pensado que isto dava tanto trabalho...

- Mas vais ver que fica lindo!...

- Vê lá mas é se paras quieto com as mãozinhas.

- Onde é que arrumaste os cravos brancos?

Sentara-se agora novamente na cama. Continuava a pensar no que haveria de ser o seu futuro. A sua nova vida. Depois de recolhido à prisão. Porém, talvez isso até tivesse o seu lado bom. Pelo menos, via-se finalmente livre da mulher. Essa autêntica cobra de água que já há alguns anos começara a detestar. Ao seu lado, estrategicamente arrumados em cima da sua mesa-de-cabeceira, estavam ainda alguns dos meios de defesa pessoal que lhe haviam distribuído no quartel-general: um polido revólver de bolso, de origem soviética; uma sofisticada pistola-metralhadora com silenciador, de fabrico checoslovaco; e uma genuína navalha de ponta em mola, de fabrico nacional. Juntamente com esses acarinhados objectos, arrumara dois cartões de identificação ainda em muito bom estado, um mítico manual de tortura da Gestapo, escrito em alemão, um emblema nazi, em ouro, um velho exemplar do Il Popolo d’Italia, com um desassombrado artigo de Mussolini, e um humilde saco de plástico amarelo. Quanto mais ia olhando para esses maléficos e impúdicos objectos, mais repugnância ia sentindo de si mesmo. E daqueles que tão devotadamente servira. A cada minuto, ou segundo, que ia passando, ia sentindo um maior peso na consciência. Sentia-se confuso. Desorientado.

- Talvez um pouco tarde. Tarde de mais.

Estava mesmo a dar as últimas. Talvez o melhor processo de pôr termo a esta degradante situação fosse mesmo o suicídio. Não! Pensando melhor, havia três belas e inocentes crianças que certamente ficariam então quase completamente desprotegidas. Sem culpa nenhuma. E acima de tudo, havia a mulher. Que não o pouparia. Nem depois de morto. Intimamente, ainda alimentava um muito secreto desejo de vingança. Em relação àquela esposa tão superficial como vaidosa. Com quem, apesar de tudo, ainda partilhava quase todas as noites a sua cama.

- Mas não os seus sonhos...

Fora essa desavergonhada que só pelo prazer de possuir belos fatos, posição social garantida e um espampanante automóvel para as eternas passeatas domingueiras a Cascais, o encorajara a aceitar o seu posto de informador. E a procurar cada vez mais vítimas para as prisões políticas do regime que agora se finava. Talvez uma simples, directa e infalível facada no coração fosse a solução ideal. E apocalíptica. Para essa sua tão desejada vingança. Agora, que tudo parecia estar perdido, estava mesmo disposto a tudo. Ou talvez não...

Lembrava-se muitas vezes do seu falecido pai. Adepto incondicional do regime salazarista. Que há muitos anos lhe falara de notáveis empreendimentos do regime.

- Coisas de encantar o mundo! Ou, pelo menos, parte desse mundo...

Como a inesquecível Exposição do Mundo Português. Na década de quarenta. Que transformara Belém no centro do mundo. Pelo menos do mundo de Salazar. O seu pai falara-lhe sempre com subido orgulho da enormidade daquela exposição. Do fascínio que sobre ele exercera a espectacularidade dos pavilhões que então ladeavam a Praça do Império. Ou o exótico e irresistível aspecto da Secção Colonial. Que chegara ao preciosismo de reproduzir integralmente uma rua de Macau. A da Felicidade. Casa a casa. Loja a loja. Quase habitante a habitante. Falara-lhe até que nessa soberana ocasião estivera alojado no próprio recinto da exposição o Rei do Congo. O próprio. O único reconhecido pelo Império. E que o próprio Hitler felicitara então o nosso Presidente da República. Carmona de sua graça. Era bom que se comemorassem desse modo os oitocentos anos da nossa nacionalidade. E os trezentos da Restauração. Embora sozinhos. Ou apenas acompanhados pelo Hitler. E pelo Duque de Kent. Orgulhoso, o seu pai falara-lhe das belas passeatas que dera por todo o recinto da exposição. Durante vários dias. Pelo Mosteiro dos Jerónimos. Pela Doca do Bom Sucesso. Pelo orgulho de ser português. Embora só. Contra o mundo.

- Acima de tudo era barato. Mesmo muito barato!...

Por apenas cinco escudos podia comprar-se um bilhete que dava acesso a esse paraíso. Nacional. Embora esse valor representasse o dobro do que pagara para ver, no Éden, um dos filmes que mais o maravilhara. O Feitiço do Império. De António Lopes Ribeiro. Bom filme. Dissera-lhe ele. E português. Não o esqueçamos. Era assim o seu pai. Beirão. Pobre mas honrado.

- E respeitador. Como todo o bom português.

Que mesmo quando morrera lhe parecia ainda enfeitiçado pelo que naqueles dias vira em Lisboa. Embora não o tivesse visto nos últimos anos da sua vida. Nem tivesse ido sequer ao seu funeral. A última imagem que dele recordava era um intenso brilho nos olhos. Enquanto lhe falava, embevecido, de um fabuloso Cortejo Histórico do Mundo Português. Ainda na mesma exposição. A única da sua vida. Era esse país do seu pai que ainda hoje defendia. Convictamente.

- Honrando essa memória. E a de Salazar...

Embora nem todos o conseguissem compreender. Não entendia o sentimento de muitos portugueses. Que parecia desconhecerem o notável passado da sua Pátria. A sua História. Os seus gloriosos feitos do passado e do presente. Apesar do tal Caetano. E dos seus pares. Cujo retraimento, talvez desleixo, o chegava a assustar. Num mundo cada vez mais povoado por comunistas e socialistas. E até mesmo por social-democratas. Gente pouco polida. E nociva. Praticamente sem Pátria. Nem Família. E sabe-se lá com que Deus. Que ele, contudo, continuava a vigiar. A bem da nação. Fosse lá isso o que fosse.

Era já incapaz de se olhar ao espelho do seu quarto. Situado sobre uma cómoda de madeira exótica. Repleta de ninharias. Certamente que já não suportaria sequer olhar para a reflexão da sua degradante imagem. Essa alucinante miragem talvez até lhe despertasse a intenção de dar um tiro na sua própria cabeça.

- Em plenos miolos...

Porém, acima de tudo, ainda conservava o seu amor à vida. Pelo menos à sua. Contudo, enojava-se agora de si mesmo. Repugnado. Achava-se asqueroso. Um autêntico facínora. Nunca reflectira desse modo. Sempre se pensara superior a qualquer estado de ansiedade. Porém, nesses momentos, já perdera toda e qualquer pontinha de confiança em si mesmo. Mirando fugazmente o espelho da sua cómoda, apercebera-se agora de que um convencido delator também podia chorar. O que, apesar de invulgar e algo patético, até talvez nem seja tão esquisito e raro como isso. Durante uns breves segundos, um leve e pouco consolador sorriso passou-lhe pelas faces. E pelos olhos. Talvez com um inesperado requinte masoquista. Deparara com o retrato, partido em bocadinhos, do seu mítico herói, o refinado Oliveira Salazar. Ditador de pouca classe. Perverso. Internacionalmente conhecido. E reconhecido. Um pouco por todo o mundo. O que, contudo, nada honrara o seu país. Antes pelo contrário.

A sua última grande alegria ocorrera em 1966. Quando a selecção nacional de futebol conseguira o terceiro lugar no Mundial de Futebol. Poucos anos depois de o Benfica ter sido bi-campeão europeu, Portugal voltava a mostrar ao mundo a sua raça. De muitas raças. Numa só nação. Continentais da metrópole e africanos das províncias ultramarinas haviam, mais uma vez, mostrado que o país estava unido. E forte. Apesar da guerra colonial. Injusta para quem tanto fizera por aquela gente. E continuava a fazer. Felizmente, o Eusébio era dos nossos. De Portugal. Embora suspeitássemos de um seu grande amigo. O Coluna. Que muitos afiançavam estar de alma e coração com a Frelimo. Os tais terroristas que em Moçambique atentavam contra a unidade da Pátria. Da nossa Pátria.

- Una e indivisível.

Tal como outros em Angola. E na Guiné Portuguesa. Ignara gente. De pouca e má fé. Que em Março de 1961 começara a aterrorizar, no noroeste de Angola, quem tanto por eles fizera. Matando. De má cara. Homens, mulheres, velhos e crianças. Gente inocente. Enquanto o seu desalmado chefe, um tal Holden Roberto, seduzia. Sorridente como uma surucucu. Todo o mundo ocidental. Em Nova Iorque. Para a sua terrífica causa. Brancos e mestiços foram indiscriminadamente mortos. Por ingratos e ferozes camponeses angolanos. Negros. Sempre de catana em punho. Uma matança terrível. Atroz. Incompreensível. Buela. Luango. Quitexe. Nova Caipemba. Nambuangongo. Quicabo. Em poucos dias deixaram de ser sinónimos de progresso. Passando a ser sinónimos de terror. E de morte. Os oposicionistas de Salazar defendiam ter começado aí o fim do nosso Império. Banhado em sangue. Infelizmente. Embora a nossa Economia ainda continuasse a florescer em terras africanas. A produção de café continuava a aumentar. Prosperava-se. Muito.

- Luanda continuava a ser uma cidade calma. E bela.

Tínhamos ido, mais uma vez, depressa e em força. E bem. Felizmente. E graças a Salazar. Éramos nós que continuávamos a defender o Ocidente em África. E a civilização. Embora os países civilizados não acreditassem nisso. E a Guiné, agora Bissau, já tivesse proclamado unilateralmente a sua independência. Gente mal agradecida. Tal como muitos moçambicanos. Enquanto nós tanto fazíamos por eles. Construções como a potente e impressionante barragem de Cabora Bassa. De fazer inveja a muita gente. Mesmo social-democrata. Ou civilizada. Talvez à nossa custa. Eles é que viviam bem. Muito bem. Segundo se dizia.

- Mas nós é que arregaçávamos as mangas...

Em África. Em França. Na América. Na Alemanha. Em Timor. E até mesmo em Macau. Longe de casa e da família. A bem da nação. E do seu futuro.

Eram agora sete da manhã. A luz solar começara já a invadir o seu quarto. Sombrio. E ainda repleto de fumo. Como que atraído por uma estranha luz, ou sinal, vindos de longe, levantou-se e começou-se a vestir. Lenta e ordenadamente. Como se fosse um autómato comandado à distância. Continuava absorvido pelos seus pensamentos, quando se encaminhou para fora do seu quarto. Sem sequer olhar para a cama onde tentara dormir, deu uma última olhadela de despedida para o quarto dos filhos. Embora tenso, deixou escapar duas envergonhadas lágrimas. Enquanto pisava, mais uma vez, o que restava do retrato destruído do quase imortal ditador de Santa Combadão. Pelo menos para si, Salazar parecia agora ter morrido de vez.

- Talvez tarde de mais... Quem sabe?

Olhou mais uma vez para o quarto dos filhos. Seguidamente, o seu inesperado fulgor existencialista encaminhou- o, decididamente, para a porta de saída da sua casa. Curiosamente, ao passar pela salinha de estar, reparou que na noite anterior se fora deitar sem arrumar um livro, que, mais por vício que por virtude, roubara de um dos repletos armários da Comissão de Censura: a Crítica da Razão Dialética, de Jean-Paul Sartre. O que até lhe pareceu uma piada de muito mau gosto. Fosse lá quem fosse esse escritor. Que se parecia rir de si na ilustração da capa daquele livro. Fumando cachimbo. Tal como o agora defunto Salazar, também o tal Sartre parecia estar a divertir-se com a triste sorte de um homem cuja vida ruíra. Totalmente. Apenas no espaço de um dia e algumas poucas horas. Irreversivelmente.

Música. Sempre detestara música. Fosse lá de que género fosse. A música irritava-o. De todas as maneiras. Essa gente da música vivia bem.

- Sem que fizesse trabalho que se visse.

E ainda por cima eram pessoas que geralmente detestavam a sua polícia política. E homens que como ele nela trabalhavam para defender a sua nação. O seu Império. A última missão que lhe fora destinada deixara-o desgostoso. E muito aborrecido. Vigiar todos os passos de um tal José Cid. Músico. Rapaz de boas famílias. Que, contudo, resolvera também começar a contestar o regime. O seu regime. Que no início do mês anterior lançara no mercado um novo disco. Com o seu conjunto. Um suspeito Quarteto 1111. Que algum tempo antes fizera já das suas. Tentando, talvez, mudar a História. A de El-Rei D. Sebastião. E também a nossa. Mesmo nas barbas do também pouco ingénuo Caetano. E da sua polícia. Mas desta vez nada se passara em branco. A sua polícia estava atenta. Tal como a Direcção Geral de Informação. E a sua Repartição da Informação Audio-Visual. Sempre com os seus melhores cumprimentos. E sempre a bem da nação. O tal Cid e os seus capangas. Era assim que nós sempre os tratávamos nas nossas conversas. Haviam resolvido escrever canções cujos textos contestavam aquilo a que os oposicionistas do regime chamavam de colonialismo português. Fosse lá isso o que fosse. Pigmentação. Maria Negra. Escravatura. Lenda de Nambuangongo. Falavam também dos talvez quiméricos problemas dos emigrantes portugueses em França. E das prováveis dificuldades que muitos sentiam no seu dia a dia. Em Portugal.

- Como é que aqueles meninos ricos e mimados se podiam dar ao luxo de falar dessas coisas?

Felizmente, estávamos atentos. Todos os discos foram imediatamente apreendidos. Mais uma vez salváramos os portugueses dos seus inimigos. E a nação. Embora nunca ninguém nos tivesse agradecido. Como quase sempre. O que já não nos incomodava. Éramos uma espécie de missionários do Império. No próprio continente. A sua alma. Mas não a sua razão de existir. Que essa já morrera alguns anos antes. Infelizmente.

- Como um lúgubre prenúncio do que acabaria por suceder.

No dia anterior. Ao princípio da noite. Marcello Caetano rendera-se. Não se sabia bem a quem. Num Quartel do Carmo estupidamente indefeso. A umas tropas simplórias. Mas decididas. Chefiadas por um daqueles heróis que já não existem. Pouco depois o caos começara a consumar-se. O povo. Ou alguém em seu nome. Começara a cercar os seus companheiros. Decidida e ameaçadoramente. Mesmo em frente à sede da sua polícia política. Numa recatada rua da própria capital do Império.

- Era de mais!...

Não conseguira juntar-se a eles. Com medo de ser reconhecido. Esconjurado mesmo no meio da rua. Começara a ficar aterrorizado. Quase petrificado. Tal como os seus outrora corajosos companheiros. Que acabariam por perder a cabeça. Perante aquela irada multidão que os ameaçava. Sem que ninguém viesse em sua defesa. Numa altura em que até o próprio governo já metera o rabinho entre as pernas. Rendendo-se àqueles homens. E ao que parece também ao General Spínola. Criatura de quem também quase sempre suspeitara. Segundo vira na televisão, tudo se precipitara perto das vinte horas. Quando os seus colegas haviam disparado sobre a multidão. Indiscriminadamente. Ferindo muita gente. E matando quatro pessoas. O que ainda fora pior. O principal sustentáculo do regime começara a cair sem glória. Talvez nunca a tivesse tido. O que agora já não lhe importava. Mesmo nada. Provavelmente, o seu chefe Silva Pais estaria já também a preparar-se para se render. Quase cinquenta anos de vida do seu país estavam agora a esfumar-se. Estupidamente. Às mãos de meia dúzia de soldadecos. Decididos. Tal como aquele provável herói que os liderava. Um aprumado e destemido rapaz de Castelo de Vide. Vindo de Santarém. Sempre à frente das suas tropas. Que lhe parecia ser o único a saber o que queria. No meio de toda aquela gente.

- Era pena que ele estivesse do outro lado.

Julgava que já não havia gente assim. Com raça. E orgulho. Enganara-se. A nação parecia ter ganho uma nova alma. Naquele rapaz. Capitão.

Eram oito horas certas quando saiu para a rua. Já quase cheia de gente. Apesar de ainda ser muito cedo. As pessoas pareciam mesmo muito felizes e alegres. E até a luminosidade do próprio dia lhe pareceu despontar na maior das felicidades. Contudo, ele sentia-se diferente. Para muito pior. Tinha mesmo o aspecto tragicómico de um autêntico cadáver ambulante. Engravatado. Parecia mesmo embalado num luxuoso fato completo. De bom corte. Mas sem os sapatos devidamente engraxados. Conduziu o seu automóvel, pago a prestações, através das agora movimentadas ruas da sua cidade. Percorrendo o caminho mais curto da sua casa até ao quartel da tropa. Quando deu entrada nesse novo paraíso do seu país o seu caro relógio de pulso marcava ainda oito horas e cinquenta e um. Sinal de que o seu próprio declínio evoluía agora muito mais rapidamente que o seu bem-estar. Estranhou que o portão de entrada estivesse escancarado. E que alguns soldados não tivessem sequer aparado a barba. Atravessou o pátio principal do quartel, decididamente, entrando depois no átrio do seu edifício principal. Percorreu os seus grandes e ainda encerados corredores. Dirigindo-se à secretaria. Entrou na mesma, olhando para todos os lados. Talvez receoso de ser visto por alguém conhecido. Dirigiu-se ao balcão, reparando na principal parede da sala. Onde um retrato do detestável Caetano ocupava ainda o lugar do seu antigo herói.

- Grande velhaco! Teria sido ele que o traíra?

Seguidamente, pôs o saco de que era portador em cima do balcão. Em voz baixa, chamou um jovem e sonolento oficial que ali estava de serviço. Mirando-o cuidadosamente, pediu-lhe um cigarro. E lume. Depois de dar três consoladoras passas no cigarro, e perante o olhar algo interrogativo do imberbe oficial, deixou escapar por entre os lábios, levemente e como que a medo, uma pequena e aterradora palavra. Que fora o seu passaporte para a perdição.

- Pide!...

E mais não disse. Lá fora, os raios solares daquele inesquecível Abril inundavam já toda a superfície terrestre. E tudo o que então a povoava. Com toda a sua magnificente e extraordinária intensidade. E com aquele particular brilho dos dias felizes. Até pareciam sorrir de contentamento. Tal como a maioria das pessoas. Estava-se mesmo às portas de Maio. E aquela gente nunca se sentira, nem se voltaria a sentir tão feliz...

- Pois é... Escusavas era de me estar sempre a apalpar as pernas, enquanto me contas essas histórias, não é?

- Vá lá, deixa-te disso e passa-me a segunda folha dos cravos...

- Ainda gostas mais dos vermelhos?