Wednesday, March 21, 2007

UM POEMA DE MANUEL GUSMÃO NO DIA MUNDIAL DA POESIA (QUE É TAMBÉM O PRIMEIRO DIA DA PRIMAVERA DESTE ANO)

Comemora-se hoje, dia 21 de Março, o Dia Mundial da Poesia, proclamado pela UNESCO na sua 30.ª sessão realizada em Paris nos meses de Outubro e Novembro de 1999. Os nossos habituais visitantes sabem que neste blogue é sempre Dia Mundial da Poesia, o que significa que hoje ficámos ainda mais felizes que o habitual... A Editorial Caminho, para quem todos os dias são também Dia Mundial da Poesia, associou-se a esta comemoração, oferecendo na sua mailing list um poema do livro Migrações do Fogo, de Manuel Gusmão. A ideia é mesmo amorosa e feliz, não é? É por isso que aqui cometemos agora o crime de oferecer também esse poema a todos os nossos amigos e visitantes:


HAVIA SÉCULOS

Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento

folheando a memória da terra

essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens

o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos

Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.

Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.

A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino.


MANUEL GUSMÃO

(Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lisboa, 2004)







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