Havia séculos e eram florestas sobre florestas escritas. O canto cantava: era o incêndio do vento folheando a memória da terra essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando mais fundo as árvores anteriores; essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas, nervuras que os versos enervam irrespiráveis; esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz que atrasando-se recorta estas estranhas esculturas do tempo: os poemas selvagens o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil sempre a nascer desfiladeiros e falésias, fendas, quebradas, ravinas vulcões que deflagram em écrans sucessivos Havia séculos e o cinema dos astros acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas; punha em música a infinita noite dos versos que longamente escutam aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão até estes anfiteatros que os desertos invadem. Havia séculos e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas de água dessa rosa alucinada / havia esse: o comum de nós que dos seus se dividindo, verso a verso, procura ainda alguém. E assim era de novo o início. A grande migração das imagens — havia séculos — desde há muito começara, desde sempre, já. E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos sem paz e sem lei, sem amos nem destino.
MANUEL GUSMÃO (Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lisboa, 2004) |
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