Sunday, December 31, 2006

UM POEMA DE ANO NOVO DE LEVI CONDINHO

ANO BOM

Na noite de Ano Bom
iam os rapazes solteiros
para a casa de Santa Susana
pequeno e vetusto pardieiro
junto à capela de São Gregório Magno
aí se guardavam alfaias religiosas
lanternas de procissões andores bandeiras círios
foguetes sobrados da última festa
levavam vinho e pão
iscas de bacalhau algum chouriço sacado à chaminé
fritavam filhós e velhozes
bebiam púcaros de café de cevada
eram pobres e crédulos às vezes brigões
tratavam-se por alcunhas
discutiam Azevedo Travaços Peyroteu
Félix Rogério Ben David ou o Teixeira/gasogéneo
à meia-noite lançavam os foguetes da passagem
de um ano conformado à modéstia para outro seu igual
e depois percorriam as ruas escuras
esburacadas lamacentas
tocavam chocalhos campainhas harmónicas de beiços
cantavam desajeitadas loas
parando à porta de outros pobres ou remediados
meia dúzia de ricos
alguns são vivos mas a dureza das coisas
decerto os fez esquecer a velha Casa de Santa Susana

nessas noites de infância
algo se adivinhava diferente
para os meus atentos ouvidos
ecos de fantasmas na noite entre o encanto e o terror
dos sons pela noite distendida - a Rua Detrás ou os confins de tudo
rasgões musicais cicatrizes roucas nos primórdios
da madrugada enrolada no colchão de carregão e sumaúma

LEVI CONDINHO
Roteiro Cego, 2001

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